sexta-feira, 6 de novembro de 2009
Liberte-se do Passado - 11ª Parte
Observar e Escutar - A Arte - A Beleza - A Austeridade - As Imagens - Os Problemas - O Espaço
Acabamos de investigar a natureza do amor e alcançamos, creio, um ponto que requer maior penetração, maior percebimento. Descobrimos que, para a maioria, amor significa conforto, segurança, uma garantia de satisfação emocional, contínua, para o resto da vida. Chega então uma pessoa como eu e diz: "Será isso realmente amor?", e vos contesta, e vos pede que olheis para dentro de vós mesmo. Procurais não olhar, porque isso é muito perturbador; seria preferível discutir sobre a alma ou a situação política ou econômica. Mas, quando vos vedes encostado a um canto e obrigado a olhar, percebeis que isso que sempre pensastes ser amor não é, de forma nenhuma, amor; é uma satisfação mútua, mútua exploração.
Quando digo: "O amor não tem amanhã nem ontem", ou "não existindo centro algum, então há amor", isso tem realidade para mim, mas não para vós. Podeis citá-lo e convertê-lo numa fórmula, mas sem qualquer validade. Tendes de ver o fato por vós mesmo, e, para tanto, necessita-se de liberdade para olhar, precisa-se estar livre de toda condenação, de todo juízo, de toda aquiescência ou discordância.
Ora, olhar é uma das coisas mais difíceis da vida - ou escutar - olhar e escutar são a mesma coisa. Se vossos olhos estão obcecados por vossas inquietações, não podeis ver a beleza do pôr-do-sol. A maioria de nós perdeu o contato com a natureza. A civilização tende muito à formação de grandes cidades; estamo-nos tornando cada vez mais gente urbana, vivendo em apartamentos apertados, e tendo muito pouco espaço mesmo para olhar o céu da tarde e da manhã e, por conseguinte, estamos perdendo o contato com a beleza. Não sei se já notastes quão poucos dentre nós olham o nascer ou o pôr-do-sol, ou o luar ou os reflexos da luz na água.
Tendo perdido o contato com a natureza, tendemos naturalmente a desenvolver as aptidões intelectuais. Lemos um grande número de livros, freqüentamos muitos museus e concertos, vemos televisão e temos outros mais entretenimentos. Citamos interminavelmente as idéias de outrem, muito pensamos e falamos sobre arte. Por que razão dependemos tanto da arte? Constitui ela uma forma de fuga, de estímulo? Se estais diretamente em contato com a natureza; se observais o movimento de uma ave a voar, se vedes a beleza de cada movimento das nuvens, observais as sombras nos montes ou a beleza manifestada no rosto de outra pessoa, achais que tereis vontade de ir a um museu para ver quadros? Talvez, porque não sabeis olhar todas as coisas que vos circundam; talvez seja por essa razão que recorreis a uma certa droga, para estimular--vos a ver melhor.
Conta-se uma história acerca de um instrutor religioso que todas as manhãs falava aos seus discípulos. Uma certa manhã, subiu ao palanque e, justamente quando ia começar a falar, um passarinho pousou no peitoril de uma janela e começou a cantar, a cantar, com toda a alma. Depois calou-se e foi-se, a voar. Disse então o instrutor: "Está terminado o sermão desta manhã".
Parece-me que uma das nossas maiores dificuldades é vermos, por nós mesmos, com toda a clareza, não só as coisas exteriores, mas também a vida interior. Quando dizemos que vemos uma árvore ou uma flor ou uma pessoa, vemo-la realmente? Ou vemos meramente a imagem que a palavra criou? Isto é, quando olhais uma árvore ou uma nuvem, numa tarde luminosa, vós a vedes realmente, não só com vossos olhos e intelectualmente, porém totalmente, completamente?
Já experimentastes alguma vez olhar uma coisa objetiva, uma árvore, por exemplo, sem nenhuma das associações, nenhum dos conhecimentos que a respeito dela adquiristes, sem nenhum preconceito, nenhum juízo, nenhuma palavra a constituir uma cortina entre vós e a árvore, e impedindo-vos de a ver tal qual é realmente? Experimentai, para verdes o que realmente acontece, quando observais a árvore com todo o vosso ser, com a totalidade de vossa energia. Nessa intensidade, vereis que não há observador nenhum; só há atenção. Só quando há desatenção existe "observador e coisa observada". Quando estais olhando com atenção completa, não há espaço para nenhum conceito, fórmula, lembrança. Importa compreender isso, porque vamos examinar um assunto que requer mui cuidadosa investigação.
Só a mente que olha as árvores ou as estrelas com total abandono de si própria, só essa mente sabe o que é a beleza, e quando estamos realmente vendo, achamo-nos num estado de amor. Em geral, conhecemos a beleza pela comparação ou através das criações do homem, o que significa que atribuímos beleza a um certo objeto. Vejo aquilo que considero um belo edifício e aprecio essa beleza por causa de meu conhecimento de arquitetura e pela comparação com outros edifícios que vi. Mas, agora pergunto a mim mesmo: "Existe beleza sem objeto?". Quando há um observador, ou seja o censor, o experimentador, o pensador, não há beleza, porque a beleza é então algo exterior, algo que o observador olha e julga; mas, quando não há observador - e isso requer muita meditação, investigação - há então a beleza sem objeto.
A beleza reside no total abandono do observador e da coisa observada, e só pode haver auto-abandono quando há austeridade total, não a austeridade do sacerdote, com sua rudeza, suas sanções, regras e obediência; não a austeridade no vestir, nas idéias, no alimentar-se, no comportamento - porém a austeridade que consiste em ser totalmente simples, que é a humildade completa. Não há então realização, não há escada para galgar, só há o primeiro degrau, e o primeiro degrau é o degrau eterno.
Suponhamos, por exemplo, que estejais passeando a sós ou com alguém, e vos calastes. Estais rodeado pela natureza e não se ouve o latido de um cão, o barulho de um carro que passa, nem mesmo o ruflar das asas de um pássaro. Estais em completo silêncio, e silenciosa também está a natureza circundante. Nesse estado de silêncio existente tanto no observador como na coisa observada - quando o observador não está a traduzir em pensamento o que está vendo - nesse silêncio há uma diferente qualidade de beleza. Não existe nem a natureza nem o observador. O que existe é um estado em que a mente está total e completamente só; só - não isolada - só em sua quietude, e essa quietude é beleza. Quando amais, existe algum observador? Só há observador quando o amor é desejo e prazer. Quando o desejo e o prazer não estão relacionados com o amor, então o amor é intenso. Como a beleza, ele é uma coisa totalmente nova em cada dia. Como já disse, ele não tem nem ontem nem amanhã.
É só quando vemos sem nenhum preconceito, nenhuma imagem, que somos capazes de estar em direto contato com alguma coisa na vida. Todas as nossas relações baseiam-se, com efeito, em imagens formadas pelo pensamento. Se tenho uma imagem a respeito de vós, e vós tendes uma imagem a respeito de mim, naturalmente não nos vemos um ao outro como realmente somos. O que vemos são as imagens que formamos um do outro, as quais nos impedem o contato, e é por essa razão que nosso relacionamento não funciona bem.
Quando digo que vos conheço, quero dizer que vos conheci ontem. Não vos conheço realmente, agora. O que conheço é só a imagem que tenho de vós. Essa imagem é constituída pelo que dissestes em meu louvor ou para me insultardes, pelo que me fizestes; é constituída de todas as lembranças que tenho de vós; e vossa imagem relativa a mim é constituída da mesma maneira, e são essas imagens que estão em relação e nos impedem de comungar realmente um com o outro.
Duas pessoas que viveram em comum por muito tempo têm imagens uma da outra, que as impedem de estar em relação. Se compreendemos as relações, podemos cooperar, mas não há possibilidade de cooperação através de imagens, de símbolos, de conceitos, ideologias. Só quando compreendemos a verdadeira e mútua relação entre nós, há possibilidade de amor, mas o amor é negado quando temos imagens. Por conseguinte, importa compreenderdes, não intelectualmente porém realmente, em vossa vida diária, como formastes imagens a respeito de vossa esposa, de vosso marido, de vosso vizinho, de vosso filho, de vossa pátria, vossos políticos, vossos deuses; nada mais tendes senão imagens.
Essas imagens criam o espaço entre vós e aquilo que observais, e nesse espaço há conflito. Vamos, pois, agora descobrir juntos se é possível nos livrarmos do espaço que criamos, não só fora de nós, mas também dentro de nós mesmos, o espaço que separa as pessoas em todas as suas relações.
Ora, a própria atenção que dais a um problema constitui a energia que resolve o problema. Quando dispensais toda a atenção - quer dizer, tudo o que tendes - não existe observador nenhum. Há só o estado de atenção, que é energia total, e essa energia total é a forma mais elevada de inteligência. Naturalmente, esse estado da mente deve ser todo de silêncio; e esse silêncio, essa quietude, surge quando há atenção total, e não quietude disciplinada. Esse completo silêncio em que não há observador nem coisa observada é a mais alta forma de uma mente religiosa. Mas o que sucede, nesse estado, não pode ser expresso em palavras, porque o que sei por meio de palavras não é o fato. Para descobrirdes por vós mesmo, tendes de passar por esse estado.
Cada problema está relacionado com todos os outros problemas e, assim sendo, se puderdes resolver um só problema completamente - não importa qual seja - vereis que sereis capaz de enfrentar e resolver facilmente todos os demais. Naturalmente, estamos falando de problemas psicológicos. Já vimos que um problema só pode existir no tempo, isto é, quando enfrentamos uma dada situação incompletamente. Assim, não só temos de estar cônscios da natureza e estrutura do problema e vê-lo totalmente, mas também devemos enfrentá-lo tão logo surge e resolvê-lo imediatamente, para que não possa enraizar-se na mente. Se deixamos um problema durar um mês, um dia, ou mesmo alguns minutos, ele deforma a mente. Assim, será possível enfrentarmos imediatamente um problema, sem nenhuma deformação, e nos livrarmos dele imediata e completamente, sem que fique, na mente, nenhuma memória, nenhuma arranhadura? Essas memórias são as imagens que levamos conosco e são essas imagens que enfrentam essa coisa portentosa que é a vida e, por conseguinte, há contradição e, daí, conflito. A vida é muito real; não é uma abstração; e, quando a enfrentamos com imagens, nascem problemas.
Será possível enfrentar cada caso que surge, sem esse intervalo de espaço-tempo, sem esse vão entre a própria pessoa e aquilo de que ela tem medo? Só é possível, quando o observador não tem continuidade, o observador, que é o formador da imagem, o observador que é uma coleção de memórias e idéias, um feixe de abstrações.
Quando olhais as estrelas, existe vós, que estais a olhar as estrelas; o céu está todo inundado do brilho das estrelas, o ar é fresco, e lá estais vós, o observador, o experimentador, o pensador, vós, com vosso coração dolorido, vós, o centro, a criar espaço. Jamais compreendereis nada acerca do espaço existente entre vós e as estrelas, entre vós e vossa esposa ou marido ou amigo, porque nunca os olhastes sem a imagem, e essa é a razão por que não sabeis o que é a beleza ou o que é o amor. Falais sobre eles, escreveis a seu respeito, mas jamais os conhecestes, a não ser, talvez, em raros intervalos de total abandono de vós mesmo. Enquanto existir um centro a criar espaço em torno de si, não haverá amor nem beleza. Não havendo nenhum centro e nenhuma circunferência, então há amor. E quando amais, vós sois beleza.
Ao olhardes um rosto à vossa frente, estais olhando de um centro, e esse centro cria o espaço entre as pessoas, e é por isso que nossas vidas são tão vazias e insensíveis. Não podeis cultivar o amor ou a beleza e tampouco podeis inventar a verdade; mas, se estiverdes sempre cônscio do que estais fazendo, podereis cultivar o percebimento e, graças a esse percebimento, começareis a ver a natureza do prazer, do desejo e do sofrimento, e a total solidão e tédio em que vive o homem; começareis então a descobrir aquela coisa chamada "espaço".
Havendo espaço entre vós e o objeto que estais observando, sabereis que não há amor e, sem o amor, por mais que vos esforceis para reformar o mundo ou criar uma nova ordem social, ou por mais que discurseis a respeito de melhorias, só criareis agonia. Portanto, tudo depende de vós. Não há líder, não há instrutor, não há ninguém que possa ensinar-vos o que deveis fazer. Estais só neste mundo insano e brutal.
Jiddu Krishnamurti
Fonte:http://www.jiddu-krishnamurti.net
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Um comentário:
Querida amiga.
Penso que todas estas lições nos ensinam um novo modo de ver a vida, modo este que nos completa e nos dá sentido, mesmo não tendo uma resposta definitiva.
Lindo final de semana para ti.
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